Estado de emergência e de calamidade pública e seus efeitos conforme as leis de licitação e de responsabilidade fiscal.

Desde que a OMS decretou a situação de pandemia em todo o mundo em decorrência do coronavirus (COVID-19), os governos estão tomando medidas para lidar com a propagação dos vírus e suas consequências. Os primeiros atos governamentais são, via de regra, a publicação de decretos reconhecendo situação de emergência ou estado de calamidade pública. Os efeitos práticos da declaração de emergência e calamidade pública ocorrem principalmente na facilitação de contratação sem licitação e na flexibilização dos limites com o gasto público.

ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA DIANTE DO COVID-19: Efeitos práticos de sua decretação conforme as Leis de Licitação e de Responsabilidade Fiscal

                      
  1. Conceitos e cabimentos
    dos decretos de situação de emergência e de calamidade pública

Desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS)
decretou a situação de pandemia em todo o mundo em decorrência do coronavirus (COVID-19), em 11 de março de 2020, os governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o Brasil, estão tomando medidas para lidar com a propagação dos vírus e suas consequências, tanto para o sistema de saúde quanto para a economia e as finanças públicas.

Os primeiros atos governamentais são, via de regra, a publicação de decretos reconhecendo situação de emergência ou estado de
calamidade pública.

Mas o que significa decretar situação de emergência e/ou calamidade pública, e quais os efeitos práticos de tal decreto?

Quando situações fáticas de desastres, naturais ou não, afetam sobremaneira uma região, comprometendo a saúde ou a segurança dos cidadãos, e exigindo uma resposta rápida e extraordinária do poder público para lidar com suas consequências, é necessário estabelecer uma situação jurídica especial, que permita o atendimento às necessidades temporárias de excepcional interesse público, voltadas à resposta aos desastres e à reabilitação do cenário.

Referida situação jurídica especial é estabelecida por meio da publicação de decretos, declarando a situação de emergência ou o estado
de calamidade.

Os conceitos de situação de emergência e de estado de calamidade pública são encontrados no art. 2º do Decreto Federal nº 7.257, de 4
de agosto de 2010, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil,
conforme o seguinte:

Art. 2º  Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I – (…)

II – (…)

III – situação de emergência: situação anormal, provocada por
desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;

IV – estado de calamidade pública: situação anormal, provocada por
desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;

A emergência caracteriza-se pela “urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízos ou comprometer a incolumidade ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros
bens, públicos ou particulares, exigindo rápidas providências da Administração para debelar ou minorar suas consequências lesivas à coletividade”[1]. A calamidade pública, por sua vez, deve ser declarada quando a situação de perigo e anormalidade social já está estabelecida, e suas consequências já estão sendo sentidas pela sociedade.

A seguir, analisaremos as duas principais consequências da declaração da situação de emergência e do estado de calamidade pública: a possibilidade de se realizar compras e contratações públicas por
dispensa de licitação, conforme previsto no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93
(Lei de Licitações e Contratos Administrativos) e a suspensão de prazos,
limites e resultados fiscais, conforme previsto na Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

  •  Emergência, Calamidade Pública e Dispensa de
    Licitação

A Lei nº 8.666/93 dispõe o seguinte em relação à dispensa de licitação em situações de emergência e estado de calamidade pública:

Art. 24.  É dispensável a licitação:

(…)

IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando
caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

A decretação de situação de emergência ou de estado de calamidade pública é hipótese de afastamento do processo de licitação e
contratação direta de bens e/ou serviços, por meio de contratos de emergência, com prazo de vigência não superior a 180 (cento e oitenta) dias.

Importante destacar que a lei é clara ao restringir referidas contratações a bens e serviços necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa, de forma que todo o resto das contratações necessárias ao funcionamento da administração pública deve atender os procedimentos licitatórios.  Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União (TCU) consolidou o entendimento de que “a dispensa de licitação, em casos de emergência ou calamidade pública (art. 24, inciso IV, da Lei 8.666/93), apenas é cabível se o objeto da contratação direta for o meio adequado, eficiente e efetivo de afastar o risco iminente detectado[2].

Visando orientar os municípios mineiros sobre o tema, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG) elaborou o Guia Básico para os jurisdicionados em situação de emergência ou em estado de calamidade pública, que pode ser acessado pelo seguinte link: https://www.tce.mg.gov.br/MunicipioEmergencia/guia_basico.pdf

  • Calamidade
    Pública e Responsabilidade Fiscal

A decretação de estado de calamidade pública gera também efeitos importantes no âmbito fiscal.

O orçamento público, cujas normas gerais foram previstas nos artigos 165 a 169 da Constituição da República de 1988, aumentou sua importância jurídica desde a publicação da Lei Complementar nº 101, em 4 de maio de 2000. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) deu caráter de
austeridade, transparência, controle, responsabilidade e tecnicidade à gestão orçamentária, e exigiu dos gestores públicos adequações culturais e financeiras às exigências legais orçamentárias.

Não obstante, todo esse controle orçamentário é sensível às situações fáticas extraordinárias, que exigem da administração pública providências urgentes para evitar ou minimar danos aos cidadãos. Nesse
sentido, o art. 65 da Lei Complementar nº 101/2000 estabelece exceções à aplicação de algumas normas fiscais em caso de estado de calamidade pública, conforme o seguinte:

Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:

I – serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições
estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;

II – serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a
limitação de empenho prevista no art. 9º.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput no caso de estado de
defesa ou de sítio, decretado na forma da Constituição.

Primeiramente, importante anotar que a LRF é bem mais
restritiva do que a Lei de Licitação para reconhecer necessidades temporárias de excepcional interesse público que justifiquem o estabelecimento de uma situação jurídico-orçamentária especial. A lei orçamentária autoriza as exceções legais apenas em casos de estado de calamidade pública, não sendo, portanto, suficiente a declaração de situação de emergência; e a calamidade pública deve ser reconhecida pelo Legislativo, e não só decretada pelo Executivo[3].

Havendo, portanto, o reconhecimento do estado de calamidade pública pelo legislativo, ficam suspensas, temporariamente, e na esfera de competência do respectivo decreto (federal, estadual ou municipal):
1) a contagem dos prazos de controle para adequação e recondução das despesas de pessoal (arts. 23 e 70) e dos limites do endividamento (art. 31); 

2) o atingimento das metas de resultados fiscais previamente estabelecidos nas leis orçamentárias (LOA e LDO); e 

3) a limitação de empenho e de movimentação financeira (art. 9º).

Na prática, e em resumo, os governos poderão extrapolar os limites da LRF e aumentar os gastos públicos, desde que de forma justificada, e desde que os gastos a maior sejam indispensáveis para lidar com a situação de calamidade pública decretada pelo executivo e reconhecida pelo Legislativo[4].

REFERÊNCIAS

ALVES, B; GOMES, S; AFFONSO,
A. Lei de Responsabilidade Fiscal
Comentada e Anotada.
4 ed.São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19
ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42
ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. Senado aprova decreto que reconhece estado
de calamidade pública.
20 de março de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-20/senado-aprova-decreto-reconhece-estado-calamidade-publica?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter


[1]
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito
Administrativo Brasileiro.
42 ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

[2]
Acórdão 1987/2015 – Plenário, TC 001.386/2013-1, relator Ministro Benjamin Zymler, 12.8.2015. Informativo de Licitações e Contratos do TCU n. 255, sessões de 11 e 12 de agosto de 2015.

[3]
Esse foi o caso da declaração de calamidade pública em decorrência do
coronavirus, que resultou no Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, que reconheceu, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública para o enfrentamento do COVID-19.

[4]
A Decretação de Estado de Calamidade Pública, para fins da Lei de
Responsabilidade Fiscal, em nível federal, era inédita até a crise do
coronavirus. Assim, não há, nos tribunais judiciais e de contas, jurisprudência sobre o assunto. Alguns estados, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, e centenas de municípios, chegaram a decretar estado de calamidade financeira nos anos de 2015 e 2016, em decorrência da crise política e econômica que tomou o país naquele período, com o objetivo de flexibilizar as normas fiscais e terem as contas aprovadas pelos tribunais de contas.  Especificamente sobre o caso mineiro, o TCEMG aceitou o argumento de calamidade financeira e aprovou as contas do ex-governador Fernando Pimentel, no Julgamento do Balanço Geral do Estado nº 1007713.