A EUTANÁSIA E O DIREITO A UMA MORTE DIGNA
Camila Pinheiro Silva Couto – 24/11/2020
O presente artigo visa analisar uma questão bastante polêmica no ordenamento jurídico brasileiro que é a eutanásia.
A palavra eutanásia tem origem etimológica grega, sendo formada pelas expressões “eu” e “thanatos”, com significado de boa morte e morte sem sofrimento. Este termo significa, ainda, a escolha pelo óbito de um doente incurável.
Trata-se de um tema de bastante complexidade e que divide opiniões tanto na seara jurídica quanto religiosa.
O direito à vida é um direito fundamental indisponível e constitucionalmente protegido, amparado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Ou seja, não basta que a pessoa viva, mas o Estado deverá garantir às pessoas uma vida digna.
Ocorre que, em que pese haver uma preocupação estatal em assegurar que os indivíduos respeitem as suas próprias vidas e as dos demais, havendo políticas públicas contra o suicídio, punição para os crimes de homicídios, torturas, omissão de socorro e ausências de prestação médica hospitalar, entre outros, nada se fala no ordenamento jurídico sobre a necessidade de garantir aos indivíduos uma morte digna e sem sofrimento.
Diante da ausência de regulamentação e da divergência de entendimentos jurisprudenciais, muitas pessoas acabam vivendo durante anos uma vida de muito sofrimento, muitas vezes submetidas,
obrigatoriamente, à tratamentos médicos dolorosos com o objetivo de prolongamento da vida, ainda que indigna.
O termo Eutanásia difere-se de ortotanásia, distanásia e suicídio assistido, sendo necessário esclarecer cada um destes termos para que não haja confusão entre eles.
A eutanásia é um procedimento de indução da morte de um enfermo, desde que haja a concordância deste, em razão de doenças incuráveis, em estágio terminal e/ou com dores constantes e extremas. Ela possui um viés humanitário, sustentada pela empatia, piedade e compaixão.
Contudo, se não houver concordância expressa deste, haverá uma tipificação penal do crime de homicídio, ainda que a pena possa ser atenuada no caso da conduta do agente visar apenas que o sofrimento daquele indivíduo cesse.
A Eutanásia é exemplificada como uma ação ativa, conforme doutrina a Professora Maria Fátima Freire de Sá (2005, pg. 39):
A intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma
ação, daí tem-se “eutanásia ativa”, (…) Em outras palavras, a eutanásia ativa seria uma proposta de promover a morte mais cedo daquela que se espera, por motivo de compaixão, ante o sofrimento insuportável.
Já a ortotanásia relaciona-se aos casos em que o paciente já está severamente debilitado e que os tratamentos médicos já não estão tendo efeitos práticos, razão pela qual, de forma a evitar maiores sofrimentos, o paciente cessa os tratamentos e aguarda a morte chegar. Maria Fátima Freire de Sá (2005, pg. 39) também define a ortotanásia como sendo um tipo de eutanásia passiva, ou seja traduz-se pela ausência de ação ou “não-realização da ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância – eutanásia passiva ou ortotanásia”.
A distanásia, por sua vez, traduz-se por um prolongamento exagerado da vida, muitas vezes de maneira indigna, sendo que a
conduta médica não será ilícita, nem culpável, do ponto de vista jurídico. É um procedimento contrário ao da Eutanásia, pois visa a manutenção da vida a todo custo, prorrogando-se a morte.
Por último, a eutanásia também não se confunde com o suicídio assistido, que refere-se à prática de auxiliar ou colaborar para o processo de morte de um indivíduo, sem razões morais ou humanitárias relevantes, uma vez que este indivíduo não está acometido por
doença grave, com dores extremas ou em estágio terminal de doença incurável.
Trata-se de um crime tipificado no Código Penal no artigo 122, cuja pena mínima é de reclusão de 6 meses a dois anos, assim prescrito:
Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça
(Redação dada pela Lei nº 13.968, de 2019).
A EUTANÁSIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA MORTE DIGNA E DA LIBERDADE
O princípio da dignidade da pessoa humana é considerado pela doutrina como um supraprincípio, indisponível e que se encontra amparado pela Constituição Federal, noartigo 1º, inciso III, e por tratados internacionais.
Para Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.60) este princípio é definido como:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,
neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.
Flávia Piovesan (2000, p. 54) também define o princípio da dignidade da pessoa humana da seguinte forma:
[…] está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.
Definido o princípio da dignidade da pessoa humana, percebe-se que, em que pese a vida ser um direito fundamental primordial no ordenamento jurídico, este direito deve ser garantido conjuntamente com princípio matriz ou supraprincípio que é a dignidade da pessoa humana. Em resumo, não basta viver, mas viver com dignidade.
O direito à vida seria um direito originário elementar, sem o qual nenhum outro poderia existir. Ele está previsto no art. 5º da Constituição Federal da República:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […]
Para Paulo Gustavo Gonet Branco (2009, pg. 393), o direito à vida pode ser definido como “pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades […]”.
Por outro viés, consta na Convenção Americana dos Direitos Humanos – o Pacto de San José –, de1969 (Ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 2002), em seu artigo 4º, que “toda pessoa tem o
direito de que se respeite a vida. […] esse direito deve ser protegido pela
lei e, em geral, desde o momento da concepção […] ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Observa-se que no artigo 5º da CF, supracitado, está previsto outro direito fundamental que é o direito à liberdade. O direito à liberdade, no entendimento de G. P. de Moraes (2008, pg. 37), é derivado do princípio da determinação individual, não somente a “liberdade
de querer”, exteriorizada pelo poder de escolher entre várias possibilidades, mas também a “liberdade de atuar”, externada pelo poder de fazer tudo o que se quer, removidas quaisquer coações ilegais, ilegítimas e ilícitas.
O direito à liberdade também é um direito fundamental de altíssima relevância e de uma das suas perspectivas de análise, podemos entende-lo como o direito que confere ao indivíduo ser proprietário do seu próprio corpo. Nesse sentido, cada indivíduo seria responsável
por seu destino, podendo agir e dispor dele conforme sua vontade e de acordo com sua consciência.
Resta iniciado um conflito de direitos entre o direito à vida e à liberdade. Quando há esse tipo de conflito, é possível a utilização de uma fórmula de Ponderação ou análise de jurisprudências.
Noutro giro, faz-se necessário, ainda, entender que a Constituição Federal prevê como sendo de responsabilidade do Estado proporcionar aos indivíduos a proteção à vida, à dignidade da pessoa humana – devendo para tanto propiciar saúde, educação, lazer, trabalho,
segurança previdência social, entre outros -, proteção à maternidade, à
infância, mas não há qualquer garantia ou proteção ao direito de uma morte digna.
Ou seja, o indivíduo é protegido desde a sua concepção (quando ainda nascituro), protegido durante a sua vida, mas não há qualquer previsão legal de que essa morte ocorra de forma digna e sem sofrimento, a não ser nos casos tipificados como homicídio ou equiparáveis.
O entendimento positivado hoje, no direito brasileiro, é de que qualquer ato contra a vida é considerado como crime, ainda que configurado como eutanásia.
Nesse sentido, há uma lacuna legal que merece ser sanada, pois o direito está em constante evolução e a Lei não traduz uma interpretação consonante ao princípio da dignidade da pessoa humana – que
também merece uma morte digna.
Ou seja, nesse caso específico de eutanásia, seria necessária uma correta regulamentação de que a renúncia ao direito à vida e aceitação de uma morte digna partissem de um indivíduo que esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais e que possua capacidade civil
(maioridade). Assim, um indivíduo plenamente capaz de compreender a sua situação de doença, os riscos e tratamentos, poderia requerer, de forma expressa, o benefício de uma morte digna, cessando o seu sofrimento quando entender que já não pode mais suportar a dor.
A questão que se propõe como reflexão é: Se somos seres autônomos e temos direito à liberdade e a disposição do nosso corpo, não seria razoável que tivéssemos o poder de escolha para
abreviarmos uma vida de sofrimento em caso de doença grave e incurável, nas estritas condições de eutanásia?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NETO, Luís Inácio de Lima. A legalização da eutanásia no Brasil. Teresina, 2003. Disponível em: <www.jusnavigandi.com.br>.
FRANCO, Alberto Silva. A eutanásia no novo Código Penal. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, a. 1, n. 5, 1993.
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido – 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4º Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008.