O sistema eleitoral brasileiro e a polêmica sobre a urna eletrônica e o voto impresso

O atual sistema de votação eletrônico do Brasil é extremamente seguro e auditável por vários meios. Não faz qualquer sentido afirmar a indispensabilidade da impressão do voto para garantir a lisura e a legalidade do resultado eleitoral.

Até o final do processo eleitoral de 2014 parecia não haver dúvidas de que a urna eletrônica era um dos melhores e mais importantes produtos made in Brazil. No entanto, desde que o Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, levantou suspeitas sobre a lisura do resultado das eleições para presidência da república naquele ano[1], quando seu candidato, Aécio Neves, perdeu por uma margem apertada de votos (48,36%) para a candidata do Partido dos Trabalhadores – PT, e então presidente, Dilma Rousseff (51,64%), abriu-se um caminho que irrompeu não só nos discursos (legítimos) sobre o aperfeiçoamento do voto eletrônico, mas também, e principalmente, em perigosas teorias da conspiração sobre fraudes no sistema, que não só contestam os resultados das eleições, mas põem em risco a democracia brasileira.

Uma das figuras mais proeminentes no questionamento da lisura do sistema eleitoral brasileiro é justamente o atual presidente Jair Bolsonaro, cujo histórico de declarações antidemocráticas é conhecido por todos[2]. Apesar de ter sido eleito deputado federal por 7 mandatos, dos quais 5 foram com o sistema eleitoral eletrônico (1999 a 2015), e 1 vez presidente da república, pelo mesmo sistema (2018), Bolsonaro afirma (sem nunca provar) que as eleições de 2014 e 2018 foram fraudadas[3], e que a única solução para garantir a integridade do sistema de voto eletrônico seria o voto impresso[4]. Para ele, as atuais urnas eletrônicas não são auditáveis, de forma que apenas a impressão do voto registrado pelos eleitores viabilizaria uma auditoria no sistema e, consequentemente, garantiria a regularidade do resultado.

No entanto, a afirmação de que o processo de voto eletrônico não é auditável não é verdade. Tal afirmação demonstra ou o total desconhecimento sobre o sistema, ou é um discurso que visa apenas confundir a população para justificar, posteriormente, o questionamento do resultado eleitoral.

As atuais urnas eletrônicas são o resultado de um processo de informatização e modernização do sistema eleitoral brasileiro que iniciou em 1986. Nesse ano o TSE criou o primeiro cadastro único e informatizado de eleitores em todo o Brasil. Já as eleições gerais de 1994 foram as primeiras nas quais houve o processamento eletrônico da apuração, ou seja, a primeira vez que as zonas eleitorais enviaram os resultados das apurações via computador.

A urna eletrônica foi criada em 1996. Elaborada por uma comissão técnica criada pelo TSE e composta por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) de São José dos Campos, o aparato eletrônico de depósito e contagem de votos revolucionou o processo eleitoral brasileiro e mundial (foi o primeiro instrumento de voto eletrônico no mundo).

Antes da urna eletrônica, os eleitores manifestavam a escolha de seus candidatos em cédulas de votação, nas quais os nomes dos escolhidos eram indicados com um X, ou pela escrita do número do candidato pelo eleitor (caso de cargos majoritários, quando a lista de candidatos é muito longa para colocar todos nas cédulas). Referidas cédulas eram depositadas em urnas de lona, que eram, no final do dia, levadas para o local de apuração oficial, onde mesários e funcionários do TSE levavam dias, ou mesmo semanas, para contar e recontar os votos.

Com a criação da urna eletrônica, e a universalização de seu uso a partir das eleições municipais de 2000, o ato de votar e a apuração dos votos ficaram mais dinâmicos e seguros. Não há dúvidas de que o registro e a contagem de votos pela inteligência artificial é muito mais preciso e incorre em menos falhas do que a contagem manual de milhões de pedaços de papel por centenas de pessoas.

Importante ressaltar que o voto impresso não significa o retorno do voto escrito. A impressão do voto ocorreria por meio de uma urna eletrônica que dispusesse de uma mecanismo que permitiria a impressão do voto logo após digitado pelo eleitor na urna eletrônica, que sairia em um compartimento lacrado transparente, permitindo sua conferência visual, sendo, logo após, depositado automaticamente em uma urna lacrada. Ou seja, não há nenhum contato manual do eleitor com o papel impresso com o voto. Muito menos esse documento pode ser retirado pelo eleitor da zona eleitoral.

Mas, como todo sistema informatizado, os dados das urnas poderiam ser fraudulentamente adulterados. Por tal razão, o atual sistema, já aperfeiçoado em mais de 20 anos de existência, já prevê não um, mas vários mecanismos de controle e auditoria, próprias do sistema e externas[5], quais sejam:

  1. As urnas eletrônicas não têm conectividade com a Internet. Dessa forma, não há como acessá-las ou invadi-las remotamente;
  2. O software utilizado pelas urnas é criptografado, e exige uma assinatura digital que assegura a autenticidade do programa, ou seja, confirma que o programa tem origem oficial e foi gerado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Referida assinatura e lacração das urnas ocorre em cerimônia pública, na qual participam partidos políticos, Ministério Público, representantes da OAB e do próprio TSE;
  3. O processo eletrônico de votação possui vários mecanismos de segurança: assinatura digital, criptografia, resumo digital (hash) e a tabela de correspondência de todas as urnas utilizadas, de forma que qualquer ataque ao sistema causa um efeito dominó e a urna eletrônica trava, não sendo possível gerar resultados válidos;
  4. Antes de abrir a urna, o presidente da sessão eleitoral liga a máquina, na presença dos mesários e fiscais de partidos políticos, e imprime a zerésima, que traz toda a identificação daquela urna e comprova que nela estão registrados todos os candidatos e que nenhum deles computa voto;
  5.  Todas as máquinas emitem o Boletim de urna (BU), documento emitido em cada seção após a conclusão da votação, com as seguintes informações: total de votos por partido, total de votos por candidato, total de votos em branco, total de comparecimento em voto e total de nulos, identificação da seção e zona eleitoral, hora do encerramento da eleição, código interno da urna eletrônica e seqüência de caracteres para validação do boletim;
  6. Além da zerésima e do boletim de urna, também é emitido o Registro digital do voto (RDV), que consiste na inserção, de forma aleatória, do voto de cada eleitor, assinado digitalmente pela urna eletrônica, em uma tabela de tamanho igual à da quantidade de eleitores da seção eleitoral, e que, juntamente com os demais documentos, serve como meio de auditar a correspondência dos votos de cada urna com o resultado oficial;
  7. Ademais, o TSE efetua diversos testes públicos de segurança do sistema, sempre antes de cada eleição, ocasião em que investigadores inscritos apresentam e executam planos de ataque aos componentes externos e internos da urna eletrônica para testar sua segurança e apontar  eventuais falhas e aprimoramentos necessários.

Resta claro que o atual sistema de votação eletrônico do Brasil é extremamente seguro e auditável por vários meios. Não faz qualquer sentido afirmar a indispensabilidade da impressão do voto para garantir a lisura e a legalidade do resultado eleitoral.

Pelo contrário, a impressão do voto pode suscitar problemas para o sistema, como já apontado pelo STF em duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 4543 e 5889, que declararam a inconstitucionalidade do voto impresso estabelecido pelas leis 12.034/2009 e 13.165/2015), como:

  • o aumento da vulnerabilidade do sistema, ao se acoplar nele uma impressora externa;
  • permissão de identificação do voto do eleitor, caso haja algum travamento no sistema que exija a intervenção dos mesários;
  • encarecimento do processo eleitoral, pois a compra de urnas com a tecnologia de impressão de voto exigiria uma investimento incial médio estimado em 2 bilhões de reais;
  • causaria um retrocesso institucional, já que se poria mais valor à uma conferência manual dos votos do que à todos os mecanismos de controle e auditoria já existentes;
  • incentivaria questionamentos sobre a integridade do sistema, o resultado dos pleitos, e provocaria uma constante judicialização do processo eleitoral.

O escritório Couto, Lourenço & Miranda Advogados Associados defende a democracia e o Estado de Direito. Apoiamos a realização de eleições livres, a regularidade, legitimidade e segurança do sistema eleitoral brasileiro, e confiamos no Tribunal Superior Eleitoral, no Ministério Público e nas demais instituições republicanas, como os partidos políticos, para mantermos a democracia brasileira viva, forte e livre de ameaças antidemocráticas de qualquer espécie.


[1] Importante ressaltar que o então coordenador jurídico da campanha de Aécio Neves, o deputado federal tucano Carlos Sampaio, declarou, sobre o pedido de auditora das eleições, feito junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que este “não tem nada a ver com pedido de recontagem dos votos nem estamos questionando o resultado. Só queremos evitar que esse sentimento de que houve fraude continue a ser alimentado nas redes sociais.”. Mesmo deixando claro que a suspeita de fraude não seria propriamente do partido, mas uma resposta ao clamor público, em 2018 o próprio PSDB, por meio de um de seus mais importantes correligionários, o Senador Tasso Jereissati, fez uma “mea culpa”, reconhecendo o erro de ter questionado o resultado das eleições, afirmando que “Não é da nossa história e do nosso perfil. Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia.” (Fontes: http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/10/psdb-pede-ao-tse-auditoria-para-verificar-lisura-da-eleicao.htmlhttps://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,nosso-grande-erro-foi-ter-entrado-no-governo-temer,70002500097. ).

[2] https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/bolsonarismo-leonardo-avritzer/.

[3] https://www.brasildefato.com.br/2021/07/01/bolsonaro-admite-nao-ter-prova-que-alegava-possuir-sobre-fraude-nas-urnas-em-2018

[4] https://noticias.r7.com/brasil/bolsonaro-cogita-desistir-da-eleicao-de-2022-se-nao-tiver-voto-impresso-19072021

[5] Todas as informações sobre o funcionamento das urnas eletrônicas e as formas de controle e proteção dos dados podem ser encontrados no site do TSE: https://www.tse.jus.br/eleicoes/urna-eletronica