O Ministério das Relações Exteriores – Itamarati – estima que cerca de 2,5 milhões de brasileiros vivem e trabalham no exterior[1], tendo como alguns dos principais destinos os Estados Unidos, Japão e Portugal. A diáspora brasileira é um fenômeno constante, mas tende a se intensificar em períodos de crises econômicas e sociais, como ocorreu durante o período militar (1964-1985), a crise econômica das décadas de 1980 e 1990, e mais recentemente com a crise econômica que se intensificou em 2014.
A grande maioria dos emigrantes, enquanto mantêm uma permanência ilegal no país de destino, têm como principal objetivo juntar dinheiro para enviar à família no Brasil, e aqui construir um patrimônio. Quando a pessoa consegue regularizar sua permanência no país de destino, ou mesmo conquista uma segunda cidadania, a tendência é que ela faça investimentos não só no Brasil, mas também no país em que se encontra.
Ademais, tem sido cada vez maior o investimento de brasileiros em imóveis no exterior[2], seja em busca de um local mais tranquilo e seguro para viverem após a aposentadoria, seja para aproveitar oportunidades de negócios em diversas cidades em todo o mundo que incentivam a imigração para repovoar locais com grande queda de natalidade[3].
Assim, são vários os casos de pessoas e famílias que constroem um patrimônio transfonteiriço, composto por bens móveis e imóveis situados em dois ou mais países diferentes.
Diante, pois, dessa realidade, tem sido cada vez mais recorrente a busca de respostas e soluções para questões relacionadas à sucessão hereditária nos casos em que brasileiros que falecem, em território nacional ou estrangeiro, e que deixam bens no Brasil e/ou em outros países: qual lei sobre sucessão incidirá? A da nacionalidade do de cujus? A do país no qual a pessoa faleceu? Ou a do país aonde se encontram os bens? E qual é o local adequado para abrir o processo de sucessão: no domicílio do falecido? No país de sua nacionalidade? No local dos bens?
Da legislação incidente na sucessão internacional e da competência para processar e julgar o inventário
Primeiramente, é importante destacar que o princípio da soberania, fundamento do Estado Moderno, garante que cada Estado crie sua legislação, e não se submeta à legislação de qualquer outro Estado. Isso significa que cada país tem suas normas de sucessão de bens, que podem coincidir ou conflitar. Para resolver ou minimizar as consequências da incidência de múltiplas legislações, os sistemas jurídicos criam normas sobre a incidência da lei nacional e estrangeira.
No Brasil, essas normas, relativas à sucessão encontram-se na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Em seu art. 10, a LINDB estabelece que a sucessão por morte obedece à lei do país do domicílio do falecido. Ou seja, independente da nacionalidade, a lei aplicada à sucessão é aquela de onde o individuo tinha estabelecido domicílio na época do óbito.
Outra é a regra para se definir a competência do juízo que processará o inventário. Ainda considerando o princípio da soberania, a regra vigente nos Estados é a da jurisdição exclusiva, ou seja, nenhum país se submete a decisões judiciais proferidas por tribunais de outros países[4]. Assim, independente de qual lei seja aplicável na espécie, a competência para processar e julgar o inventário será sempre do juízo do local aonde os bens a inventariar se encontram.
Ilustramos com um exemplo, para melhor esclarecer a questão:
Fulano, brasileiro, divorciado, com um filho, muda-se para os Estados Unidos, lá firmando domicílio, e vindo a se casar. Após isso, adquire um imóvel nos Estados Unidos e, posteriormente, um imóvel no Brasil. Falece nos Estados Unidos, sem deixar testamento.
Suponhamos que a lei norte-americana estabeleça regra distinta da lei brasileira para qual lei sucessória deve ser observada, estipulando que deve ser aplicada a lei da nacionalidade do falecido, não do domicílio. Como fica o inventário?
Primeiramente, os herdeiros deverão abrir dois processos sucessórios: um nos Estados Unidos, para inventariar o bem imóvel que lá se encontra, e um no Brasil, para inventariar o bem imóvel que se encontra em território nacional. Considerando as regras de cada um dos países, o tribunal brasileiro deverá aplicar a lei sucessória americana (lei do domicílio), e o tribunal americano deverá aplicar a lei sucessória brasileira (lei da nacionalidade).
Suponhamos, ainda, que, diferentemente da lei brasileira, que considera a esposa meeira, e que considera cônjuge e filhos concorrentes na herança legítima, a lei norte-americana determina que todo o patrimônio fique com o cônjuge sobrevivente, caso não haja testamento estabelecendo de modo diverso. Nesse caso, o imóvel situado nos Estados Unidos seria dividido conforme o seguinte: 50% de meação, sendo da esposa, e os outros 50% divididos entre a esposa e o filho, 25% para cada. Já o imóvel situado no Brasil ficaria integralmente com a esposa.
No total do legado, a esposa ficaria com cerca de 86% dos bens, enquanto ao filho restaria 14% dos bens.
Diante da multiplicidade de leis e juízos, qual a melhor estratégia para evitar, ou diminuir, o desequilíbrio na distribuição do legado entre os herdeiros? Elaborando testamento.
Das vantagens do testamento em casos de sucessão transfonteiriça
Já falamos, no artigo Das vantagens de fazer um testamento, o que é o testamento e porque vale a pena uma pessoa definir como quer que seu patrimônio seja distribuído após a sua morte.
No caso de patrimônio transnacional, o testamento ganha ainda maior importância, visto que oportuniza às pessoas conhecer plenamente as regras de sucessão aplicadas em cada país e, a partir disso, distribuir melhor seu legado.
Apesar de ser possível a elaboração de um único testamento para dispor de todo o patrimônio, é altamente recomendável que o testador elabore diferentes testamentos nos diferentes países aonde possua bens a legar, cada um disciplinando apenas os bens que se encontrem em cada país.
Isso porque o reconhecimento de testamento elaborado em outro país é um processo longo e complexo, que passa pela tradução juramentada do documento, a análise da regularidade de sua elaboração conforme a lei estrangeira, a possibilidade de aplicação das disposições nele contidas e eventual conflito com a legislação brasileira, e por todo um processo judicial de convalidação do testamento.
Por outro lado, a elaboração de diferentes testamentos viabiliza ao testador, em contato com profissionais competentes em cada país, conhecer a legislação local, saber das possibilidades de distribuir o legado, considerando a legítima, e produzir um documento de acordo com a legislação local, que será reconhecido pelo próprio juízo do país.
E, para evitar qualquer conflito entre os documentos, é importante que os profissionais contratados em cada país possam entrar em contato entre si, para confirmar que não há qualquer conflito entre os bens dispostos em cada um dos documentos, bem como para informar, em cada testamento, a existência do outro, evitando, assim, o desconhecimento de qualquer dos documentos pelos herdeiros.
O
escritório Couto, Lourenço & Miranda
está à disposição para fornecer orientação e o auxílio necessário para melhor orientação
jurídica.
[1] https://www.camara.leg.br/radio/programas/434059-quem-sao-os-25-milhoes-de-brasileiros-que-vivem-no-exterior/
[2] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45938520
[3] https://veja.abril.com.br/mundo/cidades-europa-procuram-imigrantes/
[4] Isso não significa que decisões proferidas em outros países não possam ser executadas no Brasil. No entanto, referidas decisões devem ser homologadas pelos tribunais pátrios, mais especificamente, pelo Superior Tribunal de Justiça.