Em 2021 a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006) completou 15 anos de vigência. Considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) uma das leis mais avançadas no mundo para enfrentar a violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha é resultado de uma longa campanha de coletivos de mulheres, organismos nacionais, regionais e internacionais, tais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por reformas no sistema de justiça que reconheçam a violência de gênero intrafamiliar como uma questão de interesse público, de necessária intervenção estatal para proteger as mulheres violentadas e punir os homens violadores.
Não há dúvidas de que a lei é uma conquista institucional e histórica, tendo sido crucial para colocar no debate público o problema estrutural, e até então “naturalizado”, da violência doméstica, que era sistematicamente escondido embaixo dos tapetes da vida privada, formados pelo entrelaçamento do machismo, do patriarcado e das desigualdades de gênero deles decorrentes.
No entanto, a Lei Maria da Penha, por si só, não é capaz de dar conta de toda a complexidade estrutural e normativa que envolve as questões da violência de gênero, notadamente as violências que não se manifestam (predominantemente, ou imediatamente) no corpo físico da mulher.
A Lei nº 11.340/2006 estabeleceu 5 formas predominantes de violência doméstica e familiar contra a mulher[1], quais sejam:
- a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
- a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
- a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
- a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
- a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Das violências acima elencadas, 4 delas são facilmente correlacionadas a crimes tipificados no Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940). A violência física pode manifestar-se como lesão corporal leve, grave ou gravíssima (art. 129) ou mesmo feminicídio (art. 121, VI, §2º). A violência sexual pode resultar em estupro (art. 213), violação sexual mediante fraude (art. 215), importunação (art. 215-A) ou assédio sexual (art. 216-A), ou mesmo o registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B). A violência patrimonial pode configurar furto (art. 155), roubo (art. 157), extorsão (art. 158) e dano (art. 163). A violência moral, por seu lado, como já apontado na própria lei Maria da Penha, pode resultar em crime de calúnia (art. 138), difamação (art. 139) ou injúria (art. 140).
No entanto, a violência psicológica, a mais comum e constante das violências doméstica e familiar contra a mulher[2], e talvez a mais silenciosa, não encontrava tipificações no código e nas leis penais.
Caracterizada por atos de ameaça, constrangimento e insultos, humilhação, ridicularização e desqualificação, manipulação, perseguição e isolamento, vigilância e controle, violação da intimidade e do direito de ir e vir, dentre outros, raramente era possível correlacionar a violência psicológica com algum crime, quando muito com o crime de ameaça (art. 147), que, entre todos, tem a menor pena, qual seja, a detenção de um a seis meses, ou multa.
A necessidade de se correlacionar as violências previstas na Lei Maria da Penha com os crimes do código penal decorrem do fato de que aquela não é uma lei penal. Ainda que não se tenha plenamente definido, principalmente em relação às medidas protetivas nela previstas, sua natureza cível ou penal, cautelar ou satisfativa, não há dúvida de que a Lei Maria da Penha estabeleceu, eminentemente, normas processuais, e não normas materiais, e certamente não criou nenhum tipo penal.
Assim, a proteção à mulher restava “manca”, já que a principal violação à qual elas estão submetidas era impunível em termos penais. Isso até o ano de 2021.
Neste ano, foram publicadas duas leis que incluíram no Código Penal dois crimes: a Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021, que criou o crime de perseguição, e a Lei nº 14.188, de 29 de julho de 2021, que tipificou o crime de violência psicológica contra a mulher. Os artigos têm as seguintes redações:
Perseguição
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:
I – contra criança, adolescente ou idoso;
II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;
III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.
§ 3º Somente se procede mediante representação.
Violência psicológica contra a mulher (Incluído pela Lei nº 14.188, de 2021)
Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
A nova legislação é fundamental para a eficácia e a consolidação do combate à violência doméstica contra as mulheres. Ela dá um norte para a denúncia, o processamento e a condenação dos homens autores de violência psicológica que, até então, não sofriam qualquer punição pelos seus atos para além de eventuais restrições decorrentes das medidas protetivas.
Sem condenações, os autores de violência continuam a praticá-las, com as mesmas ou com outras mulheres, sem temer qualquer condenação, sem enodoar seu histórico de vida com antecedentes criminais, enfim, sem se responsabilizar criminalmente pelos seus atos.
Mas, como em toda acusação (e como princípio geral do processo), é necessário que a vítima da violência psicológica apresente provas da prática do crime pelo agente, que passa a ser réu em ação penal. Esse é um ponto importante a se destacar, já que nesses 15 anos de vigência da Lei Maria da Penha, consolidou-se o entendimento de que a denúncia da mulher, e sua narração sobre as violências sofridas, já são suficientes para o deferimento das medidas protetivas previstas na lei, algo que é absolutamente acertado, tendo em vista que as violências domésticas dão-se principalmente em espaços privados, sem testemunhas, e, no caso da violência psicológica, sem materialidade do crime.
No entanto, quando se fala em condenação penal, fala-se na punição máxima do Estado sobre um indivíduo. O direito penal, enquanto medida última e mais gravosa ao sujeito, deve atuar sempre observando os princípios constitucionais garantidores da presunção de inocência e do devido processo legal, com a observância do contraditório e da ampla defesa. Assim, o que se pode esperar dos juízes e tribunais no momento de processamento e julgamento dos novos crimes de violência psicológica e perseguição é a exigência de que haja elementos de prova suficientes que corroborem a narrativa da vítima e fundamentem a condenação do réu.
Os meios de prova, como em todo processo comum, são todos os admitidos em direito: documental (dentre eles mensagens de texto e áudio de aplicativos, emails, postagens em redes sociais), testemunhal e pericial. Neste último caso, a perícia psicológica pode assumir um importância central, para identificar o dano psíquico sofrido pela mulher e para estabelecer o nexo causal entre o dano e a violência psicológica sofrida.
Enfim, a tipificação do crime de violência psicológica é, sem dúvidas, um avanço normativo no combate à violência doméstica contra a mulher. No entanto, ela só será eficaz na medida em que as mulheres denunciarem seus agressores, na medida em que forem adequadamente atendidas nos programas e políticas públicas de atendimento, assistência e proteção às vítimas de violência doméstica, e na medida em que o poder judiciário condenar os autores de violência, aplicando as penas primárias e secundárias previstas na legislação penal.
O escritório Couto, Lourenço & Miranda está à disposição para fornecer orientação e o auxílio necessário para melhor orientação jurídica.
[1] O rol não é taxativo. As violências enumeradas não excluem outras tantas manifestações de atos que agridem, diminuem, subalternizam e calam as mulheres, tirando sua agência e sua capacidade de viver de forma digna e sem ameaças e medo.
[2] ENGEL, Cíntia Liara. A violência contra a mulher. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/190215_tema_d_a_violenca_contra_mulher.pdf